27.9.09

Manoel de Barros (Brasil)

    
     
    


foto jsm     
     
     

Exercícios de ser criança  (trecho)

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
Era o mesmo que roubar um vento
e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos
A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito
Porque gostava de carregar água na peneira
Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça, monge
ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
Foi capaz de interromper o voo de um pássaro botando
ponto final na frase.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!
    
     
      

13 comentários:

Maresias disse...

Querido JSM

Manoel de Barros foi-me dado a conhecer por um sábio. Hoje não vivo sem o ler. De encomenda em encomenda cá me vão chegando os seus pequenos grandes livros.

Posso dizer que a pedra floriu o perfume mais doce que alguma vez senti.


Beijo e um bom dia para esse lado do oceano.

Maresias disse...

"...e os vazios são maiores e até infinitos."

Um texto extraordinário.

Obrigada.

Re.beijo amigo.

José Pires F. disse...

Meu caro, Manoel de Barros é enorme. A melhor forma de expressar a minha satisfação de o ver aqui, é deixar-lhe o «Retrato do artista quando coisa»


A maior riqueza do homem é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou - eu não aceito.
Não aguento ser apenas um sujeito que abre
portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que
compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora,
que aponta lápis, que vê a uva etc. etc.
Perdoai.
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.

(...)

Um dia me chamaram primitivo:
Eu tive um êxtase.
Igual a quando chamaram Fellini de palhaço:
E Fellini teve um êxtase.

(...)

Deus disse: Vou ajeitar a você um dom:
Vou pertencer você para uma árvore.
E pertenceu-me.
Escuto o perfume dos rios.
Sei que a voz das águas tem sotaque azul.
Sei botar cílio nos silêncios.
Para encontrar o azul eu uso pássaros.
Só não desejo cair em sensatez.
Não quero a boa razão das coisas.
Quero o feitiço das palavras.

(...)

Uso um deformante para a voz.
Em mim funciona um forte encanto a tontos.
Sou capaz de inventar uma tarde a partir de uma garça.
Sou capaz de inventar um lagarto a partir de uma pedra.
Tenho um senso apurado de irresponsabilidades.
Não sei de tudo quase sempre quanto nunca.
Experimento o gozo de criar.
Experimento o gozo de Deus.
Faço vaginação com palavras até meu retrato aparecer.
Apareço de costas.
Preciso de atingir a escuridão com clareza.
Tenho de laspear verbo por verbo até alcançar o meu aspro.
Palavras têm que adoecer de mim para que se tornem mais
saudáveis.
Vou sendo incorporado pelas formas pelos cheiros pelo som
pelas cores.
Deambulo aos esgarços.
Vou deixando pedaços de mim no cisco.
O cisco tem agora para mim uma importância de Catedral.

José Pires F. disse...

PS: E, de facto, já faltava um autor brasileiro.

Ana Oliveira disse...

Gostei muito de perceber mais uma forma de encarar as palavras: poder, com elas, ter na mão o voo dos pássaros, o curso de um rio, o fim da sede com chuva de letras.
Tenho assim mais uma flor onde estava uma pedra de ignorância.
Obrigada

Um beijo

Ana

José da Silva Martins disse...

Compreendo Ana, quando se descobre Manoel de Barros ficamos a pensar como é possível não se conhecer a obra deste grande poeta e inventor de palavras.

Sendo assim e seguindo as pisadas do amigo Pires, aqui vai quanto a mim o mais delicioso de todos.


"Mundo pequeno

Bernardo é quase árvore.
Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem de longe.
E vêm pousar em seu ombro.
Seu olho renova as tardes.
Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho:
1 abridor de amanhecer
1 prego que farfalha
1 encolhedor de rios - e
1 esticador de horizontes.
(Bernardo consegue esticar o horizonte usando três fios de teia de
aranha. A coisa fica bem esticada.)
Bernardo desregula a natureza:
Seu olho aumenta o poente.
(Pode um homem enriquecer a natureza com a sua
incompletude?)"

José da Silva Martins disse...

Maresias, bejinho.
Pires, Abraço.

Ana Oliveira disse...

JSM

Obrigada por mais este pedaço de prosa.
Dificil de dizer do sentimento ao lê-lo.
Vou guardar e um dia, com a devida permissão, fazer um post com ele.
Posso?
Obrigada

Ana

maré disse...

Hão meninos que transformam vazios
em lagos infinitos. Hão meninos que das tardes de chuva fazem brotar copos de estrelas. Hão meninos que sopram as nuvens,
que seguram pedras que esmagam telhados, para costurar flores e remendar o coração.

Hão meninos...
______

"hão" para homenagear uma tia avó, fantástica contadora de estórias, que desejava, também ela, que todos os meninos conseguissem fazer florir as pedras

Um beijo ao José
a todos que me antecederam e que virão... falta alguém muito especial, não falta? :)

José da Silva Martins disse...

Ana, claro que sim. Este espaço parecendo meu não o é. Limito-me a divulgar o que gosto e que penso vai ao encontro do gosto dos amigos que fazem o favor de aqui passar. Digamos que sou um simples administrador de um certo gosto que aqui se expressa.

Beijinho.

José da Silva Martins disse...

Pois falta.

E hão meninas que sempre acrescentam uma pitada e contribuem para que este porto seja um local agradável de se passear.

Beijinho Maré.

isabel mendes ferreira disse...

_______"presente"!
:)


e perante um "peregrino das palavras" como M. de Barros que se diz? que a palavra cresce dentro do coração?????

que a imagem precede a "amarração" dos sentimentos????


que seja. este. um lugar de "ligar".


Bom dia. atrasada mas proxima. que não seja do fim. beijos a todos/as.


____________:)

maria josé quintela disse...

"no meu morrer tem uma dor de árvore"


diz o encantador de palavras.


que eu leio e releio desde que o descobri.porque acredito no poder da simplicidade.



obrigado JSM por o trazer à luz do dia.


um abraço.