28.9.09

Eugénio de Andrade (Portugal)

    
    



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Sem ti

E de súbito desaba o silêncio.
É um silêncio sem ti,
sem álamos,
sem luas.

Só nas minhas mãos
ouço a música das tuas.
   
   
   

27.9.09

Manoel de Barros (Brasil)

    
     
    


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Exercícios de ser criança  (trecho)

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
Era o mesmo que roubar um vento
e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos
A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito
Porque gostava de carregar água na peneira
Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça, monge
ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
Foi capaz de interromper o voo de um pássaro botando
ponto final na frase.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!
    
     
      

26.9.09

Isabel Mendes Ferreira (Portugal)

    
         



    
    

Técnica mista de óleo com acrílico e pastel de óleo


Nota: Livro de Joaquim Pessoa ilustrado com óleos de Isabel Mendes Ferreira.
Fotos gentilmente cedidas pela amiga Maresias.
     
      

24.9.09

Isabel Mendes Ferreira (Portugal)

    
     
   


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Montagem roubada à Maresias.
     

 

22.9.09

Thomas Wyatt (Reino Unido)

    
     
     




   foto jsm
    
    
     
    
     
Com negro olvido por carregamento
minha galé, em noites de invernia,
voga entre escolhos; cruelmente a guia
o Amor, - o meu senhor e meu tormento!
   
Cada remo é um triste pensamento:
que a Morte, em transes tais, nos alivia;
sem cessar rasga a vela a ventania
dos meus suspiros - proceloso alento.
       
Aguaceiros de lágrimas cruéis
na cordagem fizeram farto dano...
Ah estrela enganosa que perdeis
meu coração, com tanto desengano!
    
Afogada a Razão, e sem conforto
eu desespero já de ir a bom porto.
    
      
    
Tradução de Luiz Cardim
      
     

20.9.09

Alice Macedo Campos (Portugal)

    
     
       

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vacila e treme o homem que entra neste verso. não usa roupa ou adereços, não corta as unhas dos pés, e sai-lhe do queixo uma cauda de pêlo comprido que lhe tapa o sexo. mantém o braço esquerdo erguido e fala com a mão. articula um diálogo perfeito, faz duas vozes, a dele próprio e outra feminina e doce. se na sua diz nunca te deixarei, na outra diz serei sempre tua. quando se cansa de falar, leva a mão à testa e pestaneja sobre ela.


o poeta que tem um homem nu num verso, não sabe o que há-de fazer. fica paralisado enquanto ouve a conversa dele com a sua mão.

na sua voz diz:

dá-me por esta noite a carne ainda quente de um beijo,
uma pedra de fogo que possa incendiar outra pedra,
dois remos para navegar águas escuras,
águas tão densas como as que nascem da montanha,
um rio, meu amor, dá-me por esta noite um rio
que comece no teu corpo de neve,
atravesse o tempo, a luz vertiginosa,
e se afogue nos meus olhos.

na outra voz responde:

eu dou-te o nome do silêncio, uma
casa onde possas habitar até que
a morte nos restitua, um livro para
me escreveres o sol claríssimo, as
azeitonas fazendo o virgem óleo.

o poeta chora. lê a biografia do homem e compreende. foi ele quem guardou o último suspiro da amada na mão que lhe amparava o rosto. desde então, conversa com ela para suportar.

   
Aqui (link)  
     
     

19.9.09

P.S. Rege (Índia)

          
      
 
      

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Sonho

Penso que devo ter adormecido por algum tempo;
Pois quando acordei tinhas vindo e partido.
Apenas algumas flores permaneciam -
Flores que não podiam sequer dizer quem eram...
E uma fragrância vaga e suave no ar.
    
Esta noite tenho de sonhar um sonho mais longo
Para que as flores falem
E a sua fragrância estenda uma trémula ponte
Entre nós.
     
      
      
Tradução de Cecília Rego Pinheiro
      
      
      

17.9.09

Maria Quintans (Portugal)

     
     
      

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O Fim


Descubro-te no caderno da tinta a escorrer a
convexidade da palma da mão.
Devolvo-te a imagem. Antes fosse de madeira a
palavra, numa mesa de chá, a vomitar
cadências de limos. Disse-te que não, não era
o contorno que compunha a obra.
Era uma trémula encosta ali na elevação do
inútil. É nela que se sustenta a vontade e se
quebra a ponte entre a pele e a infância.

Desfolho o caderno e creio-te lá, envolta no
lixo estático da morte, em castidades
desfeitas na matemática do painel do teu
corpo.
O fim é a construção geométrica do orgasmo.
Suporte de pele nas tardes abstractas a
absolver o sangue menstrual do superior
sonho.
Qualquer sopro de fome distingue a muralha do
desejo da profecia do tempo. Por isso te
mato. Findo-te nesta folha abandonada ao
silêncio.

A pilha do relógio acabou. Deponho-te
espacialmente de caneta em punho no murmúrio
do traço. Sem esforço, evoco-te o fim do
pasmo. Exausto-te. Orgasmo-te.
   
     
     
Aqui (link)
   
     
     

16.9.09

Illé Tuktash (Chuvache)

   
     
    
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Dorme, amor!... Uma estrela nascente
Treme, suave, quando vem o vento leve.
Vibrando com o frio, o portão
Desenha os seus contornos no crepúsculo.
     
Dorme!... Esta noite serei uma pomba,
Descerei, leve, sobre a tua cortina,
Para sobre o peito te cruzar as asas,
E sem ruído,depois, te abraçar.
   
     
     
Tradução de Maria Etelvina Santos
     
     
      

15.9.09

Maré (Portugal)

  
  
   
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esta manhã sobra tudo de mim
ou nada me cabe.
talvez a noite
com a usura do seu casaco longo
tenha ancorado como um passageiro no meu corpo
e derrube os intervalos da febre.


sei que as aves podem ser ondas
nas fronteiras de outras mãos
mas é tarde na minha voz para nidificar outro nome.
neste parapeito onde descanso os olhos
há um desfocar súbito do futuro
que reforça a teoria de Heráclito :
a água passa e nunca lambe as mesmas asas.
     

      
      
Aqui (link)
      
       
       

14.9.09

Meleagro - Antologia Palatina (Grécia)

    
      
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Cegueira de Amor
        (XII. 60)
   
Um caso singular
mas sempre verdadeiro:
se poiso em ti o olhar
- abranjo o mundo inteiro!...
   
Porém, ó fado torvo e prepotente,
porém, ó sorte perra e negregada
se tu não vens, e passa toda a gente,
  Cego de repente
  - já não vejo nada!...
  
   
   
Tradução de Augusto Gil
    
     
     

7.9.09

simplesmenteeu (Portugal)

    
        
     
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no corredor de línguas ansiosas
traço o passo.
o salto livre.
desenho a asa
o desafio.
errante,
escapo ao poiso e ao destino.

escorrego nas nuvens
e a baloiçar ao vento
sou pele de outra pele.
e em abandono demorado
rasgo na madrugada
um novo rio
     
     
Aqui (link)
   
    
   

6.9.09

Eugénio Tavares (Cabo Verde)

   
         

     
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Partindo
    
      
Triste por te deixar, de manhãzinha
Desci ao porto. E logo, asas ao vento,
Fomos singrando, sob um céu cinzento,
Como, num ar de chuva, uma andorinha.
     
Olhos na ilha eu vi, amiga minha,
A pouco e pouco, num decrescimento,
Fugir o Lar, perder-se num momento
A montanha em que o nosso amor se aninha.
    
Nada pergunto; nem quero saber
Aonde vou: se voltarei sequer;
Quanto, em ventura ou lágrimas, me espera
     
Apenas sei, ó minha Primavera,
Que tu me ficas lacrimosa e triste.
E que sem ti a Luz já não existe.
      
      
      

5.9.09

Ângela Marques (Portugal)

    
      
     
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ali visitei as horas mornas
e me detive
na sequência dos contornos
apenas livres
apenas leves
das ondas suaves azuis
espuma

perdi o anel
que me atava à vida
sufoquei uma lágrima
engoli um grito

ali ficou um pedaço de um naco de mim
     
   
   
    

3.9.09

Platão(?) Antologia Palatina (Grécia)

     
     
A Beleza Fugitiva
           (VI.1)


Eu, cuja beleza altiva sorriu-se da Grécia,
Lais, a cuja porta eram enxame os amantes,
o espelho, em que me via, hoje a Afrodite dedico.
Não quero ver-me qual sou, não posso ver-me qual fico.


Tradução de Fernando Pessoa.
     
      
     

2.9.09

Graça Pires (Portugal)





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Conta-se

Falava de barcos e naufrágios,
da luz incerta das cidades,
de mulheres de longos e húmidos cabelos.
Cabia em sua boca a mudez dos outros
e, por isso, lhe escorria dos lábios
um visível silêncio.
O mar fascinava-o tanto como a lua,
ou como o cais onde amarrava o barco,
quando o vento exercitava
o seu modo desavindo de lhe afagar o corpo.
Conta-se que as ondas lhe rebentavam nos olhos
sempre que entristecia.

      
   

1.9.09

Nahuas (México)








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Eu não sei se estiveste ausente.
Eu deito-me contigo, e levanto-me contigo.
Nos meus sonhos tu estás junto a mim.
Se estremecem os brincos das minhas orelhas
eu sei que és tu que te moves no meu coração.
   
    
       
Tradução de José Agostinho Baptista