8.6.10

Isabel Mendes Ferreira - As Lágrimas Estão Todas na Garganta do Mar (Portugal)




Como se fora um prefácio…
De: Domingos Duarte Lima.

"O Zero e o Infinito – Título de um livro de Arthur Koestler

Sei que corro um risco tremendo ao deixar publicar este texto. Prefaciar um livro pode corresponder a uma sentença de morte. Para o livro e para o prefaciador. A solicitação da autora, um ser humano único, sensível, de uma bondade infinita, que admiro veneradamente – depois reiterada pelo editor, – acabou por ser irrecusável.
Mas esta obra, – as lágrimas estão todas na garganta do mar – precisa de um comentador mais sábio, mais culto e mais profundo do que eu. Isabel Mendes Ferreira, há muitos anos ausente do mundo editorial, regressa com este livro extraordinário, e nele revela uma das vozes mais belas e singulares do actual universo literário português.
Por isso escrevo estas linhas com pudor e humildade. Em apelo de benevolência ao leitor. Apenas… Como se fora um prefácio…

Não sou crítico literário. Não tenho a pretensão de algum dia o vir a ser, porque me faltam o saber, a arte e o treino que a função requer. Sou apenas um simples leitor, de olhar límpido, alguém que desde cedo se rendeu ao encantamento que se pode esconder nas páginas de um livro. E que tantas vezes emudeceu, deslumbrado perante a beleza com que um autor desconhecido o surpreendeu. Como agora, com Isabel Mendes Ferreira.

O tempo ensinou-me que a arte combinatória das palavras nunca se extinguirá. Que a sua reinvenção é incessante, porque na palavra reside um dos mais poderosos instrumentos da criação (“No princípio era o Verbo…” – e pelo “Verbo”, se a narrativa é exacta, o mundo terá sido criado). A palavra é som, é música, é sopro, e o sopro é símbolo do espírito – pneuma. E como símbolo do espírito é mais do que aquilo que expressa, é também o que deixa por dizer, o que nela está inscrito em potência (e que tantas vezes só pode ser lido pelos olhos da alma).
Algumas das melhores coisas que me aconteceram na vida – encontros, viagens, conhecimento, sensações, dores, vislumbres de mutação de consciência – devo‑as aos livros. Ao seu sussurro silencioso. E uma dessas “melhores coisas” foi também, por indicação de mão amiga, aterrar de rompante num blog chamado Piano – em cuja porta de entrada se anuncia que “o tempo é renda” –, e quedar, atónito, perante a escrita hipnótica, interpelante, de IMF. Foi como um raio, a sua leitura, naquela fronteira sempre difusa entre a prosa e a poesia. Escrita curta, tensa, intensa, de irradiante beleza. IMF escreve como quem lança sementes à terra, numa promessa úbere de sentidos, símbolos e significados. É uma sementeira de palavras cuidada, que aponta à essência das coisas ou, num dizer heiddegeriano, à “casa do ser”. Fulminante, o rigor quase escultórico com que casa as palavras. Como se desse esculpir se fosse desvelando aquela essência. Um pouco à maneira como Miguel Ângelo, nas quatro esculturas da Galleria dell’Accademia, em Florença (Il Prigione) – propositadamente inacabadas –, nos dizia que a beleza da obra de arte sempre estivera inscrita, escondida, no interior da pedra, e que a função do artista era apenas a de destapar, desvelar, essa beleza. É desse grau o modo como as palavras se revelam (e desvelam) na escrita de IMF.

Costuma ser habitual, num texto introdutório como este tentar situar o autor, enquadra-lo numa corrente literária, identificar-lhe as influências. Com IMF não vale a pena. Não é uma autora catalogável.
Nós não somos apenas aquilo que comemos, somos também aquilo que lemos e, nesse sentido, pressente-se nela um ser que se alimentou de livros, intuem-se referentes. Mas não se pode falar de influências, na verdadeira acepção da palavra.
A sua voz é absolutamente singular e única. Cria uma arquitectura nova para as palavras e para o sentido que elas têm no texto. Voz que ecoa numa linguagem que é asa e voo, lado alado de uma escrita aérea sempre rasante ao céu, na margem permanente do milagre.
Veste-se na forma de signos e de sinais, como nos antigos mistérios, onde o entendimento pressupõe a iniciação. Numa escrita grávida de significados, cultiva a omnipresença do símbolo e da metáfora, num permanente desafio a todos os sentidos possíveis. Voz, ainda, que nunca se repete, como aquela água do mesmo rio que não passa duas vezes pelo mesmo lugar.
Registo apenas algumas das impressões – e são incontáveis – deixadas pela leitura de as lágrimas estão todas na garganta do mar, para tentar dizer algo sobre uma escritora e um livro indefiníveis, tantas são as facetas em que se desdobram.

A primeira, é o poder admirável, a mestria, a exactidão, com que IMF usa as palavras. Toca-as, veste-as, reveste-as, desveste-as, revolve-as, transfigura-as, burila-as, lapida-as, fa-las explodir numa miríade de cores que o arco-iris não comporta. De cores e de significados. Como se tivesse percorrido mundos plutónicos, o mundo das profundidades por onde viajou Ulisses. E nessa viagem, que é uma peregrinação por lugares ignotos, tivesse acedido a outras formas de conhecimento, tivesse sentido outras presenças. Por isso a sua simples leitura não basta. É necessária, para captar a densidade, a intensidade, e o sentido pluriforme de cada texto ou poema de IMF, a releitura. Várias releituras. E cada uma é um banho lustral. E cada uma se sorve devagar, como quem prova lentamente um vinho raro. É uma escrita que se lê, que se bebe e que se come, naquele sentido da manducação dos antigos. Que se saboreia, e em que o sabor – sapore – é já a antecâmara de um saber – sapere.
Parece impossível que quem escreve com tal beleza não tenha acesso a qualquer forma de inspirada transcendência. Lê-se, relê-se, e na sua poderosa e hiperbólica criação metafórica sente-se a força genesíaca da água, em corrente impetuosa, fonte que se faz rio, que se espraia em delta, até transbordar num mar imenso. No fim, fica o assombro de quem regressa de um universo mágico, de névoa e sonho, onde os habitantes são vocábulos que cintilam como estrelas! E apetece mergulhar no silêncio, aquele silêncio que é ainda uma fala que interpela de outro modo.

A segunda, reside na força imagética e no sentido musical que percorrem este livro. IMF tem o dom raro da palavra curta, rigorosa, da combinação frásica paradoxal, do vocábulo inesperado, com os quais tece – rendilha – uma escrita iluminante, nítida, dotada daquela qualidade perceptiva do camoniano “vi claramente visto”, como a que é dada pelo súbito clarão do raio que rasga a noite, desfaz as sombras, e revela, como numa tela, a forma das coisas e dos seres.
Mas tem igualmente um apuradíssimo sentido da melodia, que percorre todos os seus textos como um basso ostinato, pano de fundo de uma respiração musical incessante. Uma das pessoas que melhor conhece a autora, José Pires F., diz que a sua escrita é percorrida por harmonia e ritmo. Observação certeira, porque IMF escreve com o sentido de equilíbrio das grandes obras musicais.
Mas acrescento um detalhe: tem igualmente uma refinada competência na arte da variação e da improvisação. Mesmo para os grandes intérpretes musicais, a variação e a improvisação sobre um tema inicial é dos exercícios mais difíceis de conseguir. Só é acessível aos predestinados, àqueles em cujas veias o sangue corre irmanado com a música. Ora este sentido da variação e da improvisação é um dos maiores talentos de IMF. E-lhe dada – ou escolhe – uma palavra como ponto de partida ou de apoio, e em variações e improvisações infinitas ela recria universos inimagináveis, reinventa a linguagem e como que rearranja a ordem dos planetas. Com esse ponto de apoio alavanca todos os sentidos que as palavras podem exprimir, com a mesma facilidade com que, a partir do seu ponto de apoio, Arquimedes alavancava o mundo. Há nela um instinto fatal de casar palavra-sentido melodia, resolvendo a frase ou o poema com a mesma subtileza com que os grandes compositores resolviam, nos acordes finais, a sonata ou o prelúdio.

A terceira, é a presença de uma carga emotiva muito forte na sua escrita. Mas é uma emoção contida, depurada, ascética, quase religiosa (algumas das pessoas que comentam os textos que ela publica no Piano dizem sentir-se “perante um altar”, ou “no interior de uma catedral”). Emoção expressa num tom que é um misto de parábola e profecia. IMF escreve como se fosse uma vidente, como uma profetisa.
É impressionante o olhar com que perscruta mundo. Penetra no âmago das coisas e exprime o inexprimível. Não há influência, mas há uma sonoridade de fundo, uma toada e um ritmo no dizer, que só tem paralelo no iluminado tom profético de um Khalil Gibran. Emoção por vezes expressa, nesta escrita poderosa, densa e rica – e que sentimos que vem de dentro, que é carne da sua carne e sangue do seu sangue –, em vislumbres de sofrimento, em lampejos de desconsolo, numa consciência da sem-razao e do absurdo com que a vida tantas vezes nos esmaga.
Uma emoção que vagueia de mão dada com largos silêncios - ecos mudos do vazio de si. E também com o chamamento frequente do deserto, desse deserto que é lugar de metamorfose de vida e de transformação interior. Refúgio solitário no qual se ascende à metanoia, onde pode acontecer a mutação da consciência. Lugar de todas as provas – Cristo foi tentado no deserto – no qual, segundo Eckhart, “reina apenas Deus”. Mas deserto que é igualmente o lugar das grandes revelações íntimas, que permitem rasgar a “noche oscura” de que fala S. João da Cruz. Onde se acede à luz, naquela inspirada expressão de Angelus Silesius: “Eu devo subir ainda mais alto que Deus, num deserto”.

São textos muito maduros os que constam deste livro, reveladores de uma escritora que atingiu a plenitude. Não estamos apenas perante uma escrita fabulosa, talhada com a precisão da pedra das catedrais góticas, por alguém que pressentimos ao primeiro olhar que leu muito, que viveu muito, que reflectiu muito. É a escrita de um ser que tem as palavras na ponta dos dedos, que nasceu para se transmutar em palavras, para se transfigurar em palavras.
Desta escrita irrompe uma prodigiosa força genesíaca, promana um sentido estético perfeito e uma arte singular de oscilar entre os contrários, entre os lados opostos do pêndulo: vaga e lago, fogo e gelo, luz e sombra, paixão e raiva, vida e morte.
Tentei encontrar um nome que definisse a autora, depois de ler e reler as lágrimas estão todas na garganta do mar. Não encontrava a palavra. Eu, minúsculo, perante este livro, imenso e belo. O drama do “zero” perante o “infinito”. E, de repente, o nome surgiu: Sibila! Sim, há qualquer coisa de Sibila em IMF. Ficamos, no fim da sua leitura, com a sensação de que quem assim escreve não é deste mundo, e nos fala através de uma linguagem que parece da ordem do “delírio divino”. Inacessível para nós, pelo menos a um primeiro olhar, mas que é uma porta, uma abertura, para lugares de arrepiante beleza. Como se a autora vivesse num palácio de cristal longínquo, muito alto, próximo do Empíreo, e daí pudesse observar tudo o que nos escapa. O universo de fora, que o olhar alcança. E o universo de dentro, mais vasto, o universo infinito do mais íntimo da alma humana. O fundo mais secreto da consciência.
Como se fosse dotada da terceira visão, ou do “terceiro olho” do budismo, que vê o que não pode ser visto pelo comum e humano olhar.

Domingos Duarte Lima"


Isabel Mendes Ferreira - As Lágrimas Estão Todas na Garganta do Mar (Portugal)


"É minha firme opinião que a Isabel Mendes Ferreira é, para além de uma excelente artista plástica - representada em várias colecções particulares, na Europa e nas américas, a nossa melhor Poeta. Já o disse, escrevi, redisse e rescrevi, que “ler Isabel Mendes Ferreira é como assistir ao descerrar de auroras, cantando e reinventado palavras de diferentes paladares por detrás dos fiapos da memória e da respiração das manhãs”, e continuarei a dizer e a escrever o mesmo, enquanto não aparecer no actual panorama literário português, alguém que altere esta convicção, formada desde o dia em que a descobri e de que não esqueço a forte impressão que senti ao lê-la: uma pedrada na “modorra” instalada.

Ninguém actualmente escreve como a Isabel Mendes Ferreira: nem com a profundidade nem com o estilo, nem com a qualidade que lhe advém do domínio absoluto da escrita e de um jogo de palavras soberbo.

Como se pode ler no posfácio, “O sentido ambíguo da sua escrita, converte-se no que o excede e onde ser o mesmo é ser outro de si (é outrar-se, como diz Fernando Pessoa), o que apela à desconstrução do discurso tradicional”.

Para mim, é pois, extremamente gratificante falar do novo livro de uma escritora e poeta, despojada de falsas crenças da unidade da consciência identitativa, de uma escritora que transporta os verbos que ainda não estão corroídos, pervertidos, subvertidos, gastos, e que com ela voltam fantásticos, imortais, castos e vestidos de denso sentir.

Este é um livro que me fascina, aprecio-lhe o cheiro das areias do deserto e a cor do cair da noite, quantas vezes ruborizada de pudor e aureolada de luminosidade divina, um livro para ler e reler, uma instância de retemperação, um livro onde voltaremos amiúde e que será dado a conhecer ao mundo no inicio de Junho, pela Editora Babel, com chancela da Arcádia.

"As Lágrimas Estão Todas na Graganta do Mar", integra uma novíssima colecção de poesia, iniciada por David Mourão Ferreira e onde será o terceiro título.

Por: José Pires F."

9.3.10

Buland Al-Haydari (Iraque)

O CARTEIRO


Que queres tu carteiro?
estou longe do mundo
sem dúvida estás equivocado...
já que nada de novo há
que o mundo possa trazer a este fugitivo.
O que era
é ainda o que é costume.
Sonhar
ou enterrar
ou evocar
enquanto a gente tem ainda seus festejos
e seus funerais juntando festa com festa
seus olhos desenterrados em suas mentes
outro osso para uma nova fome.
A China ainda tem a sua muralha
um mito apagado e um destino em repetição
a Terra tem ainda tem o seu Sísifo
e uma pedra que não sabe o que quer.

Carteiro
sem dúvida estás equivocado...
já que nada é novidade
volta à estrada
já que a estrada tanta vezes te trouxe.
E que queremos nós?


Trad.: Adalberto Alves

Alfredo Rodriguez (México)
















13.12.09

Albano Martins (Portugal)

 
 


foto jsm




Entras
em mim descalça, vulnerável
como um alvo próximo, ferida
nos joelhos e nas coxas. Pelo tacto
nos conhecemos, é essa luz
oblíqua que nos cega. E te pertenço
e me pertences como
a lâmina
à bainha, a chama
ao pavio.
    
   

29.11.09

Ruy Belo (Portugal)

   
    



foto jsm
   
   

EPÍGRAFE PARA A NOSSA SOLIDÃO


Cruzámos nossos olhos em alguma esquina
demos civicamente os bons dias:
chamar-nos-ão vais ver contemporâneos
     
     

23.11.09

Prémio Revelação em Literatura Infantil e Juvenil Matilde Rosa Araújo

  



Era uma vez... um mundo


Um grupo de jovens finalistas do Secundário, um orientador, uma escola, muitos amigos e... o mundo. No mundo, do mundo e para o mundo, num misto de culturas, pensamentos, emoções e atitudes nasce uma vontade – mostrar que a tolerância facilita o diálogo.

A OLHA Edições tem a honra de anunciar que o seu primeiro livro "Era uma vez... Um mundo" foi agraciado com o Prémio Revelação em Literatura Infantil e Juvenil Matilde Rosa Araújo, para o qual se tinha candidatado no passado mês de Junho.

Este livro foi desenvolvido no Colégio Marista de Carcavelos, sob a coordenação do Professor António Coelho.

Em nome da OLHA, e como parceira do projecto, envio aos autores e co-autores o meu abraço de parabéns.


Paula Viotti
Directora da OLHA Edições
    
     

20.11.09

Kalidasa (India)

     
      

foto jsm
    
    
    
O DESEJO...




O desejo a impele ao encontro do amante
O receio a detém por um momento
Parece a seda de um estandarte
Que ora se abandona ora se furta ao vento



Tradução de Jorge Sousa Braga
     
     

14.11.09

Fiama Hasse Pais Brandão (Portugal)

     
    


foto da net sem indicação de autor
    
  


Epístola para Dédalo

Porque deste a teu filho asas de plumagem e cera
se o sol todo-poderoso no alto as desfaria?
Não me ouviu, de tão longe, porém pensei que disse:
todos os filhos são Ícaros que vão morrer no mar.
Depois regressam, pródigos, ao amor entre o sangue
dos que eram e dos que são agora, filhos dos filhos.

in Epístolas e Memorandos, 1996
   

13.11.09

Maresias (Portugal)

     
    

"Os Poetas saem à Rua"


  
Antologia poética em formato de pins, da autoria da Maresias.
    
    

12.11.09

Florbela Espanca (Portugal)

   
     



foto jsm




Tarde no mar


A tarde é de oiro rútilo: esbraseia.
O horizonte: um cacto purpurino.
E a vaga esbelta que palpita e ondeia,
Com uma frágil graça de menino,

Pousa o manto de arminho na areia
E lá vai, e lá segue o seu destino!
E o sol, nas casas brancas que incendeia,
Desenha mãos sangrentas de assassino!

Que linda tarde aberta sobre o mar!
Vai deitando do céu molhos de rosas
Que Apolo se entretém a desfolhar...

E, sobre mim, em gestos palpitantes,
As tuas mãos morenas, milagrosas,
São as asas do sol, agonizantes...
    
     

3.11.09

Anónimo (Antologia Grega)

  
   



foto jsm

   
     
   
Oferenda
      
Ofereço-te um perfume? Ofereço-te ao perfume?
No fim de contas, tu — perfumas o perfume.



Tradução de David Mourão Ferreira
     
    

1.11.09

Pierre Kemp (Países Baixos)

   
   


foto jsm
    
   

Sonhos

Certas noites  sigo uma luz amarela
até uma porta azul, onde se lê: Sonho.
A porta não é aberta por minha mão
nem sou convidado por uma mulher
para comprar sonhos, e mesmo assim
sempre eles foram pagos por mim.
À noite não fiquei nada a dever.
   
   
Tradução de Fernando Venâncio
    
     

26.10.09

Hilda Hilst (Brasil)

     
     
     


foto jsm
     
     


Antes que o mundo acabe, Túlio,

Deita-te e prova

Esse milagre do gosto

Que se fez na minha boca

Enquanto o mundo grita

Belicoso. E ao meu lado

Te fazes árabe, me faço israelita

E nos cobrimos de beijos

E de flores



Antes que o mundo se acabe

Antes que acabe em nós

Nosso desejo.





(Júbilo Memória Noviciado da Paixão (1974) - Árias Pequenas. Para Bandolim - XI)
      
      

24.10.09

Jacques Prévert (França)

         
    



Óleo de Isabel Mendes Ferreira
    
    
     



O Pintor, o pássaro e a gaiola


Primeiro pinte uma gaiola com a porta aberta
Depois pinte
algo gracioso,
algo simples,
algo bonito
algo útil
para o pássaro.
Então encoste a tela a uma árvore
num jardim
num bosque
ou numa floresta.
Esconda-se atrás da árvore
sem falar
sem se mover...
Às vezes o pássaro aparece logo
mas ele pode demorar muitos anos
antes de se decidir.
Não desanime.
Espere.
Espere durante anos se necessário.
A rapidez ou a lentidão do pássaro
não influi no bom resultado do quadro.
Quando o pássaro aparecer
se ele aparecer
observe no mais profundo silêncio
até o pássaro entrar na gaiola.
E quando ele entrar
delicadamente feche a porta com o pincel.
Então
apague uma a uma todas as grades
tomando cuidado para não tocar
na plumagem do pássaro.
Em seguida pinte a árvore
escolhendo o mais bonito dos seus galhos
para o pássaro.
Pinte também a folhagem verde
e o frescor do vento
o dourado do sol
e a algazarra das criaturas na relva
sob o calor do verão.
E então espere até que o pássaro decida cantar.
Se o pássaro não cantar
é um mau sinal,
um sinal de que a pintura está ruim.
Mas se ele cantar é um bom sinal,
um sinal de que você pode assinar.
Então, com muita delicadeza,
você arranca uma das penas do pássaro
e escreve o seu nome num canto do quadro.
    
    
    

22.10.09

J.V. Cunningham (E.U.A.)

      
    
     


foto jsm
   
      
     

Sobre um verso do «Belvedere»
              de Bodenham

«A experiência é a amante da velhice»:
Mantida à minha custa, velha como eu, cabra
E parasita, fornico-a cheio de raiva
E matá-la-ia, mas qual de nós é qual?


Tradução de José Alberto Oliveira
   
    

17.10.09

Hélia Correia (Portugal)

     
    
    


Xilogravura de Ernesto Bonato
Série-Deambulatórios-2007
     
    
    



Ouço o incêndio, as fábricas. O berço
do suor interrupto. Ouço às vezes quem se ama
onde o amor não há – apenas morre
no clandestino abrir.
Ouço às vezes quem rompe os mapas cerce
e então na noite recupera as loucas
emigrações da história. Ouço crescendo
secamente os filhos no rancor e na linfa.
Astuciosamente recolhendo as vastidões adversas.
Ouço em momentos fartos o entulho,
desdobrada a raiz, fundar o mês da heresia,
a sábia recriação do sumo.
Ouço o arado. A luz. Profundamente
os barcos segregados na propensão do mar.
Ainda quem a medo desagregue
a centenária paz:
- os homens,
onde os ouço, aqui recordo
as origens compradas do terror.
Os homens, onde os ouço, aqui confirmo
suas mãos.
     
       
   

15.10.09

Amalia Bautista (Espanha)

   



foto Paulo V.

    
     


A Partida

Duas mulheres jogavam as cartas.
Eram as duas formosas e perversas.
As duas faziam batota. A partida
prolongava-se mais do que o costume,
a julgar pelos gestos de impaciência
que nenhuma ocultava. Vida e Morte
se chamavam. E tinham apostado
o coração de um homem, como sempre.
    
      

13.10.09

Maria Amaral (Portugal)



    



   
    

   
     

    


O que ata ou desata a linha vaga e breve, intensa e clara ideia do que é ou deveria ser o silêncio?

O que é exactamente a pintura, a “habitabilidade gestual”, o talento, a Arte em si mesma?

Em que margem desassossegada se instalam os ritmos certos do que é e do que parece ser? Ou se quiserem, do que é aparência intencional e do que foge à retórica estilística?

Perguntas às quais nenhuma paleta responde. Perguntas que só fazem sentido enquanto isso mesmo: interrogações sobre um caminho vivido sempre a sós. Como ostensiva e serenamente faz Maria Amaral.

Uma Pintora que troca o lugar do silêncio, que abre as portas da solidão, que investe no rumor do azul quase pálido, que nos inquieta. Uma Pintura onde o espaço não tem mancha, onde as manchas invadem o nosso espaço de sonhar. E sempre o silêncio a bater nas arestas, e sempre um horizonte afogado de cinzas que nos apertam, de rosados estrangulados a quererem saltar, ora de um Alentejo ora de uma cosmopolita Nova Iorque.

Maria Amaral não facilita, não se desvenda em aventuras cromáticas fortuitas, não descura a forma, não aveluda as esquinas.

Maria Amaral trata com secreto pudor a dor maior do silêncio. E nele nos perdemos de tanto procurar o que existe de comum entre lugares tão separados quanto colados, e afinal, o que nos aproxima é uma arte pessoalíssima: a Arte de pintar o invisível, a Arte de arrebatar o ventre da cal à cal do silêncio.

Nesta Pintora, que não se mede por “modismos”, mede-se a distância. A terrível e fascinante distância do amor. Maria Amaral anda à solta por dentro das raízes. Deixemo-nos pois guiar nesta doce invisibilidade onde ainda nos é permitido imaginar a tela de um amanhecer. Que importa o lugar? Ela devolve-nos à pureza de um tempo sem limites!

Isabel Mendes Ferreira / Galeria JE 1997