Como se fora um prefácio…
De: Domingos Duarte Lima.
"O Zero e o Infinito – Título de um livro de Arthur Koestler
Sei que corro um risco tremendo ao deixar publicar este texto. Prefaciar um livro pode corresponder a uma sentença de morte. Para o livro e para o prefaciador. A solicitação da autora, um ser humano único, sensível, de uma bondade infinita, que admiro veneradamente – depois reiterada pelo editor, – acabou por ser irrecusável.
Mas esta obra, – as lágrimas estão todas na garganta do mar – precisa de um comentador mais sábio, mais culto e mais profundo do que eu. Isabel Mendes Ferreira, há muitos anos ausente do mundo editorial, regressa com este livro extraordinário, e nele revela uma das vozes mais belas e singulares do actual universo literário português.
Por isso escrevo estas linhas com pudor e humildade. Em apelo de benevolência ao leitor. Apenas… Como se fora um prefácio…
Não sou crítico literário. Não tenho a pretensão de algum dia o vir a ser, porque me faltam o saber, a arte e o treino que a função requer. Sou apenas um simples leitor, de olhar límpido, alguém que desde cedo se rendeu ao encantamento que se pode esconder nas páginas de um livro. E que tantas vezes emudeceu, deslumbrado perante a beleza com que um autor desconhecido o surpreendeu. Como agora, com Isabel Mendes Ferreira.
O tempo ensinou-me que a arte combinatória das palavras nunca se extinguirá. Que a sua reinvenção é incessante, porque na palavra reside um dos mais poderosos instrumentos da criação (“No princípio era o Verbo…” – e pelo “Verbo”, se a narrativa é exacta, o mundo terá sido criado). A palavra é som, é música, é sopro, e o sopro é símbolo do espírito – pneuma. E como símbolo do espírito é mais do que aquilo que expressa, é também o que deixa por dizer, o que nela está inscrito em potência (e que tantas vezes só pode ser lido pelos olhos da alma).
Algumas das melhores coisas que me aconteceram na vida – encontros, viagens, conhecimento, sensações, dores, vislumbres de mutação de consciência – devo‑as aos livros. Ao seu sussurro silencioso. E uma dessas “melhores coisas” foi também, por indicação de mão amiga, aterrar de rompante num blog chamado Piano – em cuja porta de entrada se anuncia que “o tempo é renda” –, e quedar, atónito, perante a escrita hipnótica, interpelante, de IMF. Foi como um raio, a sua leitura, naquela fronteira sempre difusa entre a prosa e a poesia. Escrita curta, tensa, intensa, de irradiante beleza. IMF escreve como quem lança sementes à terra, numa promessa úbere de sentidos, símbolos e significados. É uma sementeira de palavras cuidada, que aponta à essência das coisas ou, num dizer heiddegeriano, à “casa do ser”. Fulminante, o rigor quase escultórico com que casa as palavras. Como se desse esculpir se fosse desvelando aquela essência. Um pouco à maneira como Miguel Ângelo, nas quatro esculturas da Galleria dell’Accademia, em Florença (Il Prigione) – propositadamente inacabadas –, nos dizia que a beleza da obra de arte sempre estivera inscrita, escondida, no interior da pedra, e que a função do artista era apenas a de destapar, desvelar, essa beleza. É desse grau o modo como as palavras se revelam (e desvelam) na escrita de IMF.
Costuma ser habitual, num texto introdutório como este tentar situar o autor, enquadra-lo numa corrente literária, identificar-lhe as influências. Com IMF não vale a pena. Não é uma autora catalogável.
Nós não somos apenas aquilo que comemos, somos também aquilo que lemos e, nesse sentido, pressente-se nela um ser que se alimentou de livros, intuem-se referentes. Mas não se pode falar de influências, na verdadeira acepção da palavra.
A sua voz é absolutamente singular e única. Cria uma arquitectura nova para as palavras e para o sentido que elas têm no texto. Voz que ecoa numa linguagem que é asa e voo, lado alado de uma escrita aérea sempre rasante ao céu, na margem permanente do milagre.
Veste-se na forma de signos e de sinais, como nos antigos mistérios, onde o entendimento pressupõe a iniciação. Numa escrita grávida de significados, cultiva a omnipresença do símbolo e da metáfora, num permanente desafio a todos os sentidos possíveis. Voz, ainda, que nunca se repete, como aquela água do mesmo rio que não passa duas vezes pelo mesmo lugar.
Veste-se na forma de signos e de sinais, como nos antigos mistérios, onde o entendimento pressupõe a iniciação. Numa escrita grávida de significados, cultiva a omnipresença do símbolo e da metáfora, num permanente desafio a todos os sentidos possíveis. Voz, ainda, que nunca se repete, como aquela água do mesmo rio que não passa duas vezes pelo mesmo lugar.
Registo apenas algumas das impressões – e são incontáveis – deixadas pela leitura de as lágrimas estão todas na garganta do mar, para tentar dizer algo sobre uma escritora e um livro indefiníveis, tantas são as facetas em que se desdobram.
A primeira, é o poder admirável, a mestria, a exactidão, com que IMF usa as palavras. Toca-as, veste-as, reveste-as, desveste-as, revolve-as, transfigura-as, burila-as, lapida-as, fa-las explodir numa miríade de cores que o arco-iris não comporta. De cores e de significados. Como se tivesse percorrido mundos plutónicos, o mundo das profundidades por onde viajou Ulisses. E nessa viagem, que é uma peregrinação por lugares ignotos, tivesse acedido a outras formas de conhecimento, tivesse sentido outras presenças. Por isso a sua simples leitura não basta. É necessária, para captar a densidade, a intensidade, e o sentido pluriforme de cada texto ou poema de IMF, a releitura. Várias releituras. E cada uma é um banho lustral. E cada uma se sorve devagar, como quem prova lentamente um vinho raro. É uma escrita que se lê, que se bebe e que se come, naquele sentido da manducação dos antigos. Que se saboreia, e em que o sabor – sapore – é já a antecâmara de um saber – sapere.
Parece impossível que quem escreve com tal beleza não tenha acesso a qualquer forma de inspirada transcendência. Lê-se, relê-se, e na sua poderosa e hiperbólica criação metafórica sente-se a força genesíaca da água, em corrente impetuosa, fonte que se faz rio, que se espraia em delta, até transbordar num mar imenso. No fim, fica o assombro de quem regressa de um universo mágico, de névoa e sonho, onde os habitantes são vocábulos que cintilam como estrelas! E apetece mergulhar no silêncio, aquele silêncio que é ainda uma fala que interpela de outro modo.
A segunda, reside na força imagética e no sentido musical que percorrem este livro. IMF tem o dom raro da palavra curta, rigorosa, da combinação frásica paradoxal, do vocábulo inesperado, com os quais tece – rendilha – uma escrita iluminante, nítida, dotada daquela qualidade perceptiva do camoniano “vi claramente visto”, como a que é dada pelo súbito clarão do raio que rasga a noite, desfaz as sombras, e revela, como numa tela, a forma das coisas e dos seres.
Mas tem igualmente um apuradíssimo sentido da melodia, que percorre todos os seus textos como um basso ostinato, pano de fundo de uma respiração musical incessante. Uma das pessoas que melhor conhece a autora, José Pires F., diz que a sua escrita é percorrida por harmonia e ritmo. Observação certeira, porque IMF escreve com o sentido de equilíbrio das grandes obras musicais.
Mas acrescento um detalhe: tem igualmente uma refinada competência na arte da variação e da improvisação. Mesmo para os grandes intérpretes musicais, a variação e a improvisação sobre um tema inicial é dos exercícios mais difíceis de conseguir. Só é acessível aos predestinados, àqueles em cujas veias o sangue corre irmanado com a música. Ora este sentido da variação e da improvisação é um dos maiores talentos de IMF. E-lhe dada – ou escolhe – uma palavra como ponto de partida ou de apoio, e em variações e improvisações infinitas ela recria universos inimagináveis, reinventa a linguagem e como que rearranja a ordem dos planetas. Com esse ponto de apoio alavanca todos os sentidos que as palavras podem exprimir, com a mesma facilidade com que, a partir do seu ponto de apoio, Arquimedes alavancava o mundo. Há nela um instinto fatal de casar palavra-sentido melodia, resolvendo a frase ou o poema com a mesma subtileza com que os grandes compositores resolviam, nos acordes finais, a sonata ou o prelúdio.
A terceira, é a presença de uma carga emotiva muito forte na sua escrita. Mas é uma emoção contida, depurada, ascética, quase religiosa (algumas das pessoas que comentam os textos que ela publica no Piano dizem sentir-se “perante um altar”, ou “no interior de uma catedral”). Emoção expressa num tom que é um misto de parábola e profecia. IMF escreve como se fosse uma vidente, como uma profetisa.
É impressionante o olhar com que perscruta mundo. Penetra no âmago das coisas e exprime o inexprimível. Não há influência, mas há uma sonoridade de fundo, uma toada e um ritmo no dizer, que só tem paralelo no iluminado tom profético de um Khalil Gibran. Emoção por vezes expressa, nesta escrita poderosa, densa e rica – e que sentimos que vem de dentro, que é carne da sua carne e sangue do seu sangue –, em vislumbres de sofrimento, em lampejos de desconsolo, numa consciência da sem-razao e do absurdo com que a vida tantas vezes nos esmaga.
Uma emoção que vagueia de mão dada com largos silêncios - ecos mudos do vazio de si. E também com o chamamento frequente do deserto, desse deserto que é lugar de metamorfose de vida e de transformação interior. Refúgio solitário no qual se ascende à metanoia, onde pode acontecer a mutação da consciência. Lugar de todas as provas – Cristo foi tentado no deserto – no qual, segundo Eckhart, “reina apenas Deus”. Mas deserto que é igualmente o lugar das grandes revelações íntimas, que permitem rasgar a “noche oscura” de que fala S. João da Cruz. Onde se acede à luz, naquela inspirada expressão de Angelus Silesius: “Eu devo subir ainda mais alto que Deus, num deserto”.
São textos muito maduros os que constam deste livro, reveladores de uma escritora que atingiu a plenitude. Não estamos apenas perante uma escrita fabulosa, talhada com a precisão da pedra das catedrais góticas, por alguém que pressentimos ao primeiro olhar que leu muito, que viveu muito, que reflectiu muito. É a escrita de um ser que tem as palavras na ponta dos dedos, que nasceu para se transmutar em palavras, para se transfigurar em palavras.
Desta escrita irrompe uma prodigiosa força genesíaca, promana um sentido estético perfeito e uma arte singular de oscilar entre os contrários, entre os lados opostos do pêndulo: vaga e lago, fogo e gelo, luz e sombra, paixão e raiva, vida e morte.
Tentei encontrar um nome que definisse a autora, depois de ler e reler as lágrimas estão todas na garganta do mar. Não encontrava a palavra. Eu, minúsculo, perante este livro, imenso e belo. O drama do “zero” perante o “infinito”. E, de repente, o nome surgiu: Sibila! Sim, há qualquer coisa de Sibila em IMF. Ficamos, no fim da sua leitura, com a sensação de que quem assim escreve não é deste mundo, e nos fala através de uma linguagem que parece da ordem do “delírio divino”. Inacessível para nós, pelo menos a um primeiro olhar, mas que é uma porta, uma abertura, para lugares de arrepiante beleza. Como se a autora vivesse num palácio de cristal longínquo, muito alto, próximo do Empíreo, e daí pudesse observar tudo o que nos escapa. O universo de fora, que o olhar alcança. E o universo de dentro, mais vasto, o universo infinito do mais íntimo da alma humana. O fundo mais secreto da consciência.
Como se fosse dotada da terceira visão, ou do “terceiro olho” do budismo, que vê o que não pode ser visto pelo comum e humano olhar.
Domingos Duarte Lima"